domingo, 31 de janeiro de 2021

O Rei da Casa - Crônicas

 

Milla abre a porta empolgada.

- Chegou na hora do brinde! – Ela sorri. – Eu sei que não podemos nos abraçar, mas como é bom te ver.

- Oi meninas! – Responde Isadora com certo desanimo. – Gente, podem abaixar um pouco o som? – Ela senta no sofá.  

Bella, Flor e Milla arregalam os olhos:

- Nossa, que ânimo em plena sexta-feira. – Comenta Flor.

- Eu sei... – Isadora suspira. – Tive um plantão daqueles. Esta covid19 quando não mata de um jeito, ferra de outro.

- Imagino, amiga. Olha estávamos todas de máscara, só tiramos agora para o brinde. Não dá pra beber de máscara. – Disse Milla enquanto riu. 

- Passei em casa pra tomar banho, não queria vir direto do hospital, mesmo já infectada e curada preciso evitar transmitir os vírus de outra forma.

- Foi bacana da sua parte vir, mesmo que um pouquinho. – Diz Bella. – Agora que as coisas estão mais ou menos voltando ao normal... - Fase laranja, quase amarela. - Ela ri sem jeito. - Era importante ter este momento, não comemoramos o aniversário de ninguém.

- Eu também estava com saudades. – Diz Isadora. – Mas passei em casa e me aborreci. É muito louco precisar brigar por certas coisas.

- O que aconteceu? -  Pergunta Milla. – Segura este copo, relaxa e nos conte tudo!

- É o meu filho.

- O que tem ele? – Pergunta Bella.

- Ele não quer colaborar com nada. Antes eu já fazia tudo, mas agora a minha sobrinha esta passando uns dias em casa, e pedi pra ela fazer algumas coisas.

- E o que tem isso? – Rebateu Flor. – Estranho precisar pedir isso para o seu filho, só mora vocês dois na mesma casa, pensei que ele fazia o básico.

- Muito chato fazer coisas de casa! – Milla revira os olhos. – Ainda bem que moro com minha mãe.

- Isto não diminui em nada sua responsabilidade, minha filha! – Disse Bella. – Se você faz a sua mãe de empregada ta igual o filho da Isadora, só que pior, porque é adulta!  

- Não acredito que estou ouvindo isso! – Flor bateu o copo na mesa e foi até a cozinha. Voltou com uma latinha de cerveja na mão.  – Pelo amor de Deus, em pleno século XXI você ta sofrendo porque seu filho não quer ajudar, ou melhor, fazer a parte dele nos afazeres domésticos. É sério isso?

Isadora fica sem graça, e olha para as amigas.

- Você nunca ensinou isso a ele? Prefiro não falar sobre a Milla, porque se fizer isso serei obrigada a brigar com ela!

- Calma, gente! – Milla riu. – Eu pago uma diarista super bacana, e ajudo também em casa. Só disse que era chato.

- Disso todo mundo sabe Milla. – Responde Bella. – Mas a gente sabe como você não é fã de fazer muitas coisas.

- E quem é? – Responde Milla irritada.

- Eu! – Diz Isadora prontamente. – Eu sempre fiz tudo sozinha. Nunca pedi nada pro meu filho, dava pra eu fazer eu fazia. E ele é homem, vocês sabem que eles não têm muito jeito pra fazer coisas de casa.

- Pelo amor, que papo mais anos 50! AFFFFFF – Disse Flor e revirou os olhos. – Meus ouvidos estão sangrando!

- Não exagera com a Militância Flor! – Isadora virou um copo cheio de cerveja. – To ficando mais brava com vocês do que com meu filho.

- A questão é que é mais fácil fazer do que ensinar. Ok.  Mas e se o seu filho fosse uma menina, você ensinaria ou não? – Pergunta Bella.

- Mas ai não tem comparação né, gente! – Insiste Milla. – A mãe da gente já manda a gente fazer tudo desde pequena. Acho que por isso odeio. – Milla gargalha.  

- Como que não tem comparação! – Flor se exalta. – Você aprendeu desde pequena, seria a mesma coisa caso fosse um menino.

- Isso é o que a gente queria! – diz Milla.

- Sim, por isso mesmo temos que fazer. Eu não tenho filhos, mas isto está claro pra mim. Precisamos passar valores diferentes do que tivemos para meninos e meninas, ou nada vai mudar.  

- Você odiar fazer estes serviços é só mais um exemplo de que isso não tem nada a ver com gênero. – Insiste Bella.

- Mas é que eu sempre trabalhei e estudei... – Resmunga Milla.

- Milla, se for assim ninguém tem tempo de fazer nada, mas alguém precisa fazer! – Insiste Flor.

- Ah gente, mas agora ele já ta moço. – Resmunga Isadora. – O problema foi esta pandemia, eu levava muito bem as coisas porque era só nós dois. Agora parou a escola e todas as coisas possíveis, e eu to trabalhando feito uma louca no hospital...

- Não é possível, você quer viver como se o seu filho fosse o rei da casa! – Flor se irrita. – Eu não agüento manter um bom humor com uma fala dessas.

- Calma flor! – Pede Bela. – Falar assim não adianta nada, só deixa ela mais nervosa.

- Nossa gente, pra que eu fui comentar do meu cansaço. – Isadora respira fundo. – Só queria relaxar e aproveitar que amanhã é minha folga.

Isadora levanta a vai ao banheiro.

- Caramba meninas, vocês pegaram pesado hoje hein! -  Reclama Milla e vai atrás da amiga no banheiro.

Bella e Flor se olham.

- Nossa, ainda não me acalmei. Eu não me conformo que a pessoa queira ser empregada, por isso tem uma par de boizinho se achando pra cima da mulherada. – Suspira Flor. – Querendo tratar mulher como empregada!

- Eu sei Flor. Mas ela não enxerga assim, fica calma, não precisa brigar também, né. – Diz Bella.

- Dá vontade é de tacar foco nesta macharada folgada!

- Mas ele tem 17 anos!

- Sim, e logo terá 20, e 21, 24, 32.... E vai neste ritmo, “alguém faz por mim”.

- Calma, pode ter salvação.

Flor suspira.

- Eu acho que estou estressada mesmo! – Ela ri. – Muito tempo de quarentena e descobrimos que nossa amiga está se fazendo de escrava e nem enxerga, é problema viu.

Milla e Isadora voltam.

- Meninas, eu vou embora. – Diz Isadora com a voz ligeiramente mais calma.

- Não precisa ir Isadora. - Diz Bella. – Pegamos pesado. Vamos ficar de boa, não é Flor? – Bella olha de canto de olho para a amiga.

- Sim. – Responde Flor a contragosto. – Desculpa, senta ai e fica de boa.

Isadora senta novamente.

Flor bebe uns goles de cerveja, observando a amiga.

- Permita-me dizer mais uma coisa? – Flor sorri. – Mesmo se você não permitir eu vou dizer. - Ela afirma em tom descontraído. 

- E a novidade, Flor? – Diz Milla.

- É que assim.... Precisamos mudar está visão de que as mulheres precisam fazer tudo sozinhas. Por que temos que carregar o mundo nas costas? Reclamamos na internet sobre as atitudes dos homens, e não exigimos que nossos filhos arrumem a cama?

- Você nem tem filho, Flor! – Ironiza Milla.

- Eu sei Milla. Mas você entende o que eu estou falando? – Flor passa as mãos nos cabelos. – O mundo vive uma pandemia louca, muitas pessoas morreram e continuam a morrer. A nossa amiga trabalha na linha de frente contra a doença, chega cansada, e não tem o apoio da própria família. O que ela estaria passando como valores ao filho?

- Isso é verdade. – Diz Bella. – E se algo acontece com ela?

- Sim, eu fiquei doente. E alguém foi pra minha casa, o meu filho ficou perdido.

- Ele não é mais uma criança, se algo acontecer com você, ele precisa ter noção do que é preciso fazer, em outros sentidos também. – Completa Flor com a voz mansa. – Você pode fazer tudo, se assim escolher. – Quem sou eu pra dizer o que você deve fazer?

- Uma feminista do caraio! – Riu Milla. – Mas isso é verdade.

- Eu sei, mas não é fácil mudar hábitos. - Lamenta Isadora. 

- Isso não é mesmo Isadora. Mas não é impossível. – Bella abre um sorriso. – E não é só por você, mas por ele também.

- Isso é verdade. E também o que você vai deixar para o mundo. – Mães super protetoras são péssimas.

Isadora torce o nariz e a boca.

- Mas você não se contenta neh Flor!

- Jamais! – Ela sorri. – Pra mudar precisa fazer diferente. Eu nunca imaginei que veria aquele menino tão lindo sendo acostumado assim, nessa vida mansa.

- É a idade também. – Ameniza Bella. – Os hormônios e tals.

Milla riu.

- Na minha época os hormônios faziam outra coisa.

Todas riram.

- Posso perguntar mais uma coisa?

- Ai meu deussssss – Grita Isadora simulando desespero. – Eu já entendi sobre os direitos iguais e tudo mais, você tem toda razão, Flor! Agora deixa eu tomar essa cervejinha e ouvir este som gostoso porque eu quero relaxar.

- Ah sim. – Flor riu. – Relaxa sim, e depois vamos sortear quem vai lavar a minha louça lá em casa!

Todas olharam Flor.

- Ta doida!?

- Não! Kkkkkkkk – É que como eu conseguir fazer você dividir o seu serviço de casa, todas vocês podem dividir comigo!

 


Imagem: Site "Pra ficar Charmosa. 


FIM

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gratidão pela participação!

Não é só no circo que tem palhaço

  Flor chega em casa furiosa. Joga a bolsa no sofá, bebe água e olha o celular. Percebe que tem pelo menos dez mensagens. Ignora todas e b...